Esse é um texto original escrito habilmente por Fabrício Nobre, jogador e interprete do personagem Eophain Al´Durkan. O conteúdo transita sobre reflexões após a chegada na Fazenda da Pedra de Kir e aborda algum momento entre a morte e a ressurreição do guerreiro kensai pelo dragão Melniirkumaukreton.
Memórias
04 de Preparos de 597 CY
s primeiros raios de sol tocam as mesas e cadeiras da velha taverna. Embora seja essencialmente uma estalagem gnomo, ela foi projetada para que eventuais humanos também encontrassem conforto e comodidade naquele local. Uma velha gnomo se encarrega de varrer o chão de madeira enquanto uma jovem arruma os moveis para o novo dia que se inicia.
Eophain chegou cedo, após passar a noite com seus companheiros no estabulo cedido para os Heróis Selvagens descansarem em Kir. Ele não sente fome. Bem da verdade mal dormiu. Os fatos que o levaram ate aquele local martelavam sua mente, impedindo naquela noite qualquer sombra de descanso. Tão logo ele senta é prontamente atendido. Ele e seus aliados ganharam status ao resolver problemas e mazelas que atormentavam aquele povo e, sendo assim, todos naquele momento queriam agrada-los.
Isto também o incomodava. Não queria ter tomado para sim responsabilidades além das quais já carregava. Não pensava assim por maldade ou egoísmo mas por saber que, devido a sua índole e princípios, se envolveria de corpo e alma naquela causa, perdendo o foco de sua verdadeira missão e colocando em risco um objetivo muito maior que ele ou aqueles pequenos cidadãos.
“ – Café por favor. Preto e sem adoçar. Forte. Sirva-o diretamente saído do fogo, em minha xicara – Pede o Kensai a atendente.
Não demora muito e um bule fumegante é trazido e o forte cheiro de café recém passado toma o ambiente. Eophain aprenderá com o pai muitos anos atrás a apreciar um bom café. Ele inspira a fumaça que exala de seu copo, enchendo e aquecendo os pulmões com aquele perfume quente.
Conflitos Selvagens
Os pensamentos que atormentaram seu descanso lhe alcançam. Mais uma vez o guerreiro oerita havia regressado do mundo dos mortos. Em seu julgamento, o destino que teve foi injusto e sem nenhuma gloria. Morreu por uma causa que não era sua, por um desenrolar de ações desencadeado erroneamente por outros. Quase uma fatalidade. Se lhe perguntassem, diria que morreu por acidente, assim julgava.
Ele se recordava bem dos fatos. O Elfo Rathnar, tido como promessa de um grande irmão de armas, lhe revelara uma face caótica, autoritária e arbitraria em um momento crucial da empreitada. Tomado por um julgamento obtuso e uma vontade ignóbil de resolver a trama dos gnomos, o elfo ceifara a vida de uma, ate então, inocente e importante peça daquele quebra cabeça que se desenrolava a frente dos heróis. O absurdo da decisão tomou o grupo de assalto, desencadeando uma onda de ações aleatórias que minou os alicerces da estratégia promissora que levou o kensai e seus aliados ate aquele momento.
O dragão percebe a confusão instaurada entre os membros do grupo e se aproveita. Inflando o peito, fazendo o ar a sua volta aquecer com o calor de seus pulmões colossais, ele baforeja fogo contra os invasores. A caverna se ilumina e incendeia com as chamas que saem da garganta do réptil vermelho, tornando tudo a sua volta num inferno vermelho e quente, derretendo pedra, metal e carne daqueles que ousaram invadir seus domínios.
Mesmo aturdido e ferido, o guerreiro indaga o erro ao suposto aliado mas é ignorado. Sabendo que ali o cenário havia mudado e certo que apenas o combate era iminente, o guerreiro avança para o maior desafio que enfrentara ate aquele momento. Empunhando sua valorosa lamina juramentada, confiante nas suas habilidades, nas habilidades do elfo que ate ali se provaram imprescindíveis no combate e crendo que seu aliado voltaria a si e enfrentaria o oponente ao seu lado, como tantos outros que foram derrotados, ele investe contra o dragão. Porem, mais uma vez, para sua surpresa e infortúnio, o elfo contraria suas expectativas e faz novamente o impensável.
O Inevitável
Evitando o combate e abandonando o guerreiro na estratégia, o elfo desponta para longe da luta. A estratégia de, no mínimo flanquear o dragão morrerá antes de nascer. Os outros aliados preveem o erro e tentam a todo custo auxiliar o guerreiro. Magias são lançadas, bênçãos são convocadas e orações feitas em silêncio no coração de cada membro daquela comitiva. Nada foi incapaz de evitar o que se seguiu.
Ofendido com a audácia daquele guerreiro ao avançar sozinho contra sua magnitude, o dragão desfere todos os ataques possíveis a fim de eliminar seu oponente por completo. O inevitável acontece. O guerreiro não resiste e tomba sem vida aos pés da criatura. Longe de seus objetivos, sozinho e por uma causa que não lhe pertencia, jaz morto o kensai de Furyondy.
Escuridão.
Eophain se vê ainda dentro da caverna. Não há dragões, aliados ou inimigos. Apenas o vazio e o escuro. Ele começa a tatear pelas paredes frias. Não há para onde ir. Apenas o impulso de sair daquele local move o guerreiro. Sem noção de por quanto tempo ele anda, ele não faz ideia de como sairá daquela escuridão. Aos poucos um pensamento ganha forma em sua mente a ideia de que a eternidade naquele lugar é sua realidade agora. Assim sendo, ele segue escuridão adentro.
Descanso
Uma luz. Eophain esfrega os olhos. Algo brilha ao longe. A ansiedade lhe toma o corpo, seguida de um sentimento de esperança que lhe move em velocidade naquela direção. Aos poucos uma imagem toma seus olhos.
Sentado em frente a uma pequena fogueira, um ser parece sentado fumando um grande cachimbo. Ao seu lado, uma outra criatura parece servir-se de alguma bebida. Assim que se aproxima mais, tornando sua visão mais nítida, Eophain nota um casal de gnomos conversando entre sim num tom displicente e animado.
“ – Pronto! Ate que enfim ele apareceu! – disse o gnomo sentado em frente a fogueira. Ao seu lado uma já idosa gnomo bebia algo e olhava o guerreiro de maneira curiosa através de uma grande caneca. “ – Venha, sente-se. Logo partiremos. – Diz animado o gnomo, enquanto acende a brasa do cachimbo. “ – Você demorou.” – resmunga a velha gnomo, sendo respondida enquanto o gnomo solta uma grande nuvem de fumaça pelo cachimbo “– Os humanos desconhecem os caminhos da terra, cara Carla. A muito eles perderam as ligações ancestrais com a rocha e a natureza. Sentem-se perdidos onde nos estamos em casa.”
Clareira de Terra
“ – Onde estou? – questiona o guerreiro, enquanto se aproxima da pequena fogueira. Eophain tem a sensação de que conhece a velha gnomo mas não se recorda ao certo. “ – Fique tranquilo, nobre guerreiro. Ambos estamos aqui por engano e é possível que tenhamos que deixar esse lugar. Embora para mim esteja confortável, percebo a estranheza em seus olhos.” – conclui com um leve sorriso para Eophain, que a responde. “ – Algo me diz que não pertenço a este local. Sei o que me ocorreu, sei pra onde devo ir mas não vejo meus ancestrais.”
“ – Os caminhos divinos são complexos aos olhos dos mortais – fala o velho gnomo enquanto observa calado o dialogo entre o homem e a gnomo. “ – O desenrolar dos fatos que se seguiram e ainda seguem neste exato momento, após uma ação impensada de um dos heróis de Pedra de Kir, terá impacto muito maior do que o previsto. Os efeitos desencadeados por uma simples flecha ecoaram para longe de meus domínios, atraindo a atenção de outros interessados naquele que a disparou.” – Conclui misteriosamente o gnomo ancião, soprando mais uma vez no ar uma densa nuvem de fumaça.
Eophain sente-se zonzo. Há algo naquela fumaça que inebria sua mente. Ele cambaleia levemente enquanto escuta novamente a voz do velho gnomo. “Porem, alguns desses fatos aleatórios não foram do meu agrado. E sendo quem sou, me sinto na obrigação de corrigir o que estiver ao meu alcance – e ele continua – Ainda assim, certo de minha decisão, quero ter certeza que aquela flecha disparada terá um proposito maior, que será o despertar de alguém que esta adormecido há muito tempo, preso em uma cela sem muros nem grades.”
Regresso
Ele inspira profundamente, fazendo a ponta do cachimbo arder em brasa. A fogueira crepita enquanto suas chamas bruxuleantes produzem um efeito hipnótico em Eophain. Ele escuta a velha gnomo falar, em tom de lamento – “Eu gostaria de poder ficar, meu senhor.” O velho sopra mais fumaça em direção a Eophain, numa nuvem tão densa que o cobre por inteiro. “ – Seu povo precisa de você, Carla. E eu preciso de você em meio a eles propagando nossa fé e nossa doutrina. Diga-lhes de meu feito e de meu despertar. Faça-os enxergar minha presença em cada rocha, cada folha, num pequeno texugo ou num grande Freixo. Faça-os crer novamente.”
Eophain tomba. Sua mente gira num redemoinho de imagens e sensações. Ele pouco compreendeu o que ocorreu naquele local e pouco entendeu daquele dialogo entre aquelas pessoas. Sua vista vai enegrecendo, enquanto sua mente aos poucos entra em um sono profundo. “ – Aqueles que caminham ao seu lado são dignos, grande guerreiro. São sábios em suas escolhas e suas decisões são pautas nos mesmo princípios que valorizo. Já ouvi o que precisava ser ouvido e esta é minha decisão. Este é minha retribuição pelos seus préstimos a mim e a meus semelhantes.” – são as ultimas palavras ouvidas antes que o guerreiro furyondês apague por completo.
Em uma colina verdejante o guerreiro desperta. Vestido apenas um simples traje ele olha ao redor, enquanto as lembranças do que acabara de ocorrer vão deixando sua mente por completo. Ao seu lado e de joelhos, uma velha gnomo parece orar. Lagrimas escorrem dos seus olhos enquanto palavras em um dialeto estranho saem freneticamente de seus lábios. Ao longe, Eophain enxerga Kalin que também o vê. Porem, estranhamente o sacerdote sorri e corre na direção oposta. Sabyr e mais alguns desconhecidos parecem se aproximar. A felicidade nas faces não esconde a surpresa que os demais presenciam naquele acontecimento.
O Sentido da Espada
Porem, mesmo diante dos fatos que se sucederam e após este reencontro algo incomoda profundamente o guerreiro. A fato de seu retorno do mundo dos mortos, assim como o da própria Carla Tyle são tratados num tom mundano, natural e, incompreensivelmente sem importância. Eophain observa Kalin retornar com Rathnar e ambos tratam aquele aparente milagre como algo corriqueiro! Será que eles não enxergam a natureza dos fatos? O que os trouxe aquele reencontro foi um conjunto de ações e decisões unilaterais do tal elfo que, embora tenha tido um breve dialogo com a velha gnomo, denunciando um pedido e aceitação de desculpas, tampouco tratou com o aliado que faleceu devido suas escolhas.
Todos parecem cúmplices num silencio que incomoda o kensai. Sua morte não tivera impacto? Todos esqueceram que houve um assassinato frio? Um abandono de aliado a própria sorte? Eophain tinha certeza que algo de extraordinário o trouxera de volta porem, para seus aliados, aparentemente, apenas teria ele dormido e agora havia acordado. Em nenhum momento o elfo veio ter com ele sobre os fatos ocorridos na caverna e estando todos ali vivos, Eophain conclui que derrotaram o dragão de alguma forma ou simplesmente escaparam. Ver todos dizendo “vamos esquecer o passado”, varrendo erros como sujeira para debaixo do tapete causa nojo no kensai…
“ – Ei, vejo que levantou cedo – diz Kalin para o guerreiro na taverna – posso me sentar com você para o desjejum? Eophain observa seu amigo em pé a sua frente, sorridente, demonstrando que havia aproveitado bem o descanso. Empurrando a cadeira ao lado com os pés, o guerreiro tenta resmungar um “- Sente-se” enquanto beberica seu café. Gelado. Eophain estivera tão absorto em seus pensamentos que perdeu o ponto da sua bebida. Ele resmunga novamente e pede a atendente uma nova xícara. Somente o café fervendo lhe acalmará para que Kalin justifique tudo o que ocorrerá ate ali.