A Sombra Original
Seu nome de batismo há muito foi esquecido. O que é sabido: era o único descendente de um dos ramos de uma família poderosa, em Saerloon. Porém, o jovem sabia que aquele poder era apenas uma fachada, proveniente de um ancestral há muito falecido em uma das diversas guerras ocorridas por ali.
Aquele luxo, riqueza e empáfia, era tudo uma grande farsa.
William Victor, que não lembra do seu nome, decidira, aos 10 anos que, se fosse para viver uma mentira, seria do seu jeito. E começaria a aplicar este jeito na própria casa.
Seus pais eram anfitriões de diversas reuniões entre autoridades, poderosos e comerciantes da região da Sembia. Pessoas ricas (pelo menos, aparentemente), vestiam suas melhores roupas para estes eventos. Sendo uma criança subestimada, via e ouvia tudo com muita atenção, e, eventualmente conseguia algumas moedas extras nos bolsos alheios.
Porém, de certa vez, um certo comerciante bufão percebeu a movimentação em seus bolsos, e flagrou William. Isso trouxe grande vergonha para o nome de sua casa (para o próprio William, já não valia nada mesmo).
O garoto, aos 12 anos, foi expulso de casa e teve de morar na rua. Porém, por poucas semanas. William era astuto e letrado, coisa rara em Saerloon, especialmente para um morador de rua. Em um dos seus furtos, teve a sorte (ou azar) de tentar roubar um ladrão da guilda de Teziir, do outro lado da Costa dos Dragões. O homem estava prestes a esfaquear William, mas, com espanto, recuou com curiosidade quando aquele menino ofereceu informações em troca da própria vida.
O que um garoto poderia saber de tão interessante?
Em seu pequeno livro, William havia registrado diversas conversas sobre negócios, além de diversos segredos sobre os homens mais influentes de Saerloon. O ladrão de Teziir ficou surpreso com a riqueza de detalhes dos registros, e questionou o garoto, que explicou a situação.
Este foi o primeiro encontro entre William e Berry, seu mentor.
O Ladino de Teziir
Aquela guilda estabelecida em Teziir tinha uma história muito rica. Porém, havia pouco tempo que se estabelecera nesta cidade. Ouvi boatos de que, originalmente, a guilda era baseada em Manto Estelar, antes desta cidade ser dizimada pela Praga Mágica.
Teziir era bem mais movimentada que Saerloon, sendo um importante ponto comercial entre Águas Profundas e o Mar das Estrelas Cadentes. Apesar disso, William conseguiu se adaptar bem a esta nova realidade. Viver nas ruas em Teziir significava ouvir conversas das pessoas corretas, e conseguir moedas dos bolsos mais desprevenidos.
E este foi o início do treinamento que Berry me deu. Eventualmente, as informações obtidas não eram para a própria guilda em si, mas sim para outros, que contratavam nossos serviços. Em um destes casos, houve uma confusão na estalagem da Donzela Orc, quando um grupo de piratas suspeitou da atividade de William (que de fato escutara a conversa sobre contrabando de prata roubada do templo de Selune, em Westgate). Pela confusão, William ficou preso por duas semanas, pois uma de suas facadas havia deixado um dos piratas sem sua masculinidade. Apesar do incidente, semanas depois fomos informados que os clérigos de Selune, com a ajuda da guilda, haviam recuperado sua prata.
Além das atividades dentro de Teziir, também éramos contatados para incursões nas cidades de Nathlekh, Westgate e Iriaebor, onde, pela primeira vez, tive a experiência de combater lado a lado com clérigos. A capacidade de cura destes foi determinante em impedirmos a invasão de criaturas que descera das Montanhas do Pôr do Sol.
A vida em Teziir não era simples, visto que prestávamos serviços a quem nos pagasse, e isso não despertava confiança em nossos contratantes. A única certeza era do serviço bem feito, a menos que o alvo cobrisse a oferta. Pelo menos, uma coisa: na cidade, nunca faltaria cerveja.
Ao final do quinto mês, havia chegado a hora de deixar de ser um aprendiz, e ser reconhecido por seus companheiros na guilda dos ladrões como um igual. Um dos requisitos mais importantes para ser reconhecido, era a capacidade de não ser pego desprevenido em um combate.
William já havia aprendido esta técnica há algum tempo, porém, a missão que viria seria a mais importante. Durante a Praga Mágica, alguns livros de grande valia foram abandonados em Manto Estelar. Dois grupos foram formados para explorar as ruínas da cidade, de forma a recuperar estes documentos.
A missão foi parcialmente bem-sucedida. Algo que era novo para William: as ruínas de Manto Estelar abrigavam muitas criaturas venenosas. Assim, aqueles que conseguiram retornar, voltaram em uma situação precária de saúde. Alguns companheiros de William pereceram no caminho de volta para Teziir. E nem todos os livros foram recuperados. Isto abalou fortemente a convicção de William em suas próprias habilidades. Apesar disso, e, até mesmo pelas baixas ocorridas, e a necessidade da Guilda em recompor suas fileiras, William foi reconhecido um Ladino de Teziir.
Porém, poucas semanas depois, uma cruel enfermidade se abateu sobre o jovem, e isto mudaria tudo em sua vida.
Traição Através da Fé
Uma das vantagens de fazer parte de uma guilda, é o acesso aos recursos que a mesma possui. Desta forma, foram empreendidos contatos e estudos para a cura de William. Porém, alguns meses se passavam e o jovem ladino mantinha-se desacordado. Alguns já o consideravam morto.
Até que Salah Dur Hakeem, clérigo de Lathander, chegou a Teziir.
O calishita fora supostamente contatado através das redes de informação que a Guilda de Teziir estabelecera ao longo de sua existência, e, felizmente, ele sabia do que se tratava a doença de William. O veneno de uma das feras encontradas nas ruínas, a princípio, era inofensivo. Porém, em caso de fraqueza ou exaustão do hospedeiro, este veneno dava origem a pequenas criaturas, que lentamente sugavam a força vital da pessoa infectada.
Dur Hakeem conhecia a cura para esta praga, pois seu vilarejo fora parcialmente dizimado por esta doença. Era uma poção que combinava ingredientes simples, porém, de execução complexa e precisa, pois as quantidades erradas matariam também o hospedeiro da doença.
Ao acordar, William foi colocado a par do que ocorrera nos meses em que estava desacordado, e prontamente foi agradecer a Dur Hakeem pelo milagre. O calishita desconversou, porém, pediu que William o encontrasse em Westgate em um mês, pois ele tinha assuntos a tratar naquela cidade, e precisaria do auxílio do ladino.
A guilda de Teziir havia se recuperado parcialmente das perdas em Manto Estelar, porém, o ânimo estava diferente, um pouco mais sombrio. Aquilo incomodava William, mas ele não sabia exatamente o que era.
Conforme combinado com Dur Hakeem, no mês seguinte, William se dirigiu à Westgate. Eles se encontraram na taverna da Grande Edna, e de lá seguiram para a pequena casa que servia como o culto a Torm em Westgate.
Torm?
Em um alçapão bem iluminado, estavam nos aguardando Athynee, paladina de Torm, e Yondar, clérigo de Tyr. William ficou surpreso com a reunião de pessoas que eram bastiões da fé em Faerun. E ele, William, que só se importava consigo mesmo, e com sua guilda.
Yondar falou:
“Caro William Victor. Pode ser surpresa para você, estar reunido conosco, aqui, nesta sala. Porém, acredito que isto não seja um acaso. A doença que lhe acometeu trouxe como consequência a possibilidade de confiarmos em você.”
William fez uma cara de confuso, e Dur Hakeem continuou.
“O que ocorreu nas Ruínas de Manto Estelar não foi um acaso. Os grupos foram estabelecidos de forma que a missão fosse um fracasso. O objetivo era dizimar parte da guilda de Teziir, para depois renová-la com pessoas fiéis a K’yorl, um drow, e seu associado, Tibert. O último, por sinal, hoje, é extremamente influente na Guilda de Teziir. A ordem da incursão às Ruínas de Manto Estelar partiu dele.”
Aquilo era inacreditável. Porém, as pessoas que contavam a história não deixavam margem para dúvida: eu estava envolvido em algo de proporções enormes.
Por fim, Athynee concluiu:
“Estes seres fazem parte de um grupo poderoso, que ainda não sabemos o objetivo. Porém, o que eles buscam em Teziir é utilizar os recursos da Guilda para provocar distúrbios por toda a Costa da Espada. Precisamos de alguém de dentro, que nos informe dos movimentos. Como você estava desacordado nos meses que passaram após o evento nas Ruínas, contamos que você não foi corrompido William. Por isso o escolhemos.”
William não conseguia acreditar no que ouvia. Mas, não havia como negar a verdade dita por estas pessoas. Ele precisaria trair sua guilda. Porém, pensou, não seria uma traição, visto que um dos comandantes da guilda enviara diversos membros direto para a morte.
E com este pensamento resoluto, William decidiu juntar-se aos crentes.
Exílio, a Segunda Sombra
Após aquela conversa no templo de Torm, os meses seguintes foram difíceis para William Victor.
A Guilda de Teziir não era mais um local de confiança. Porém, mesmo assim, ele deveria obter informações para reportar aos seus novos aliados. Era difícil conseguir algo preciso, dada a natureza fragmentada dos ladinos. Aparentemente, mesmo os novos membros da guilda transpareciam normalidade.
De forma objetiva, os fatos ocorreram na seguinte ordem:
- William foi designado para alguns serviços em masmorras na região da Costa dos Dragões, em eventos, a princípio, sem vínculo com os acontecimentos nas Ruínas de Manto Estelar;
- No retorno de um destes serviços, William encontrou seu principal refúgio em Teziir em cinzas, com diversos pertences seus desaparecidos; com isso, o ladino decidiu sair da cidade.
- Enquanto preparava sua fuga, os lacaios de K’yorl e Tibert conseguiram subjugar William, e o levaram a um esconderijo que ficava em um nível mais profundo, novamente, das Ruínas de Manto Estelar;
- Durante seu cárcere, um grupo organizado por Dur Hakeem, Yondar e Athynee atacou o local, libertando William, e afugentando K’yorl e Tibert da região da Costa dos Dragões. Ao mesmo tempo, houve uma mobilização da guarda de algumas cidades para dissolver a Guilda de Teziir.
Como não havia conhecimento da colaboração de William com os clérigos e paladinos, Yondar achou por bem leva-lo para bem longe da região, visto que seu informante era largamente conhecido como membro da Guilda.
Além disso, eles tinham planos para o ladino. O destino deste grupo estava no Vale da Cicatriz, onde as igrejas de Torm, Lathander e Tyr lideravam a reconstrução da área,
A nota triste desta passagem, é que, desde então, William não teve mais contato com seu mentor, Berry. O ladino ainda tem a intenção de reencontrá-lo. Porém, as demandas nos Vales demandavam urgência, e era para lá que o sembiano seguiria, sem saber muito o que o aguardaria.
Um Vale para Recomeçar
Os meses iniciais se mostraram mais fáceis do que esperado. A presença constante de Dur Hakeem e Athynee facilitava as coisas. William foi apresentado a diversos membros dos cleros de Lathander e Torm. Além disso, pode conhecer pessoalmente Khelvos Dermmen, governante interino da Encruzilhada dos Candeeiros.
Neste tempo, William aprendeu habilidades diversas às quais fora submetido na Guilda de Teziir, em especial, nas tratativas com homens de poder, com honra. Simultaneamente, as habilidades inatas do ladino eram úteis nas empreitadas contra das facções que disputam o Vale da Cicatriz, em especial, os Zentarins, a Morte Ampla e os Dançarinos.
Muitas das tratativas dos adversários desta frente de religiões ocorriam longe dali, na Cidade do Vale da Cicatriz. Naquele lugar caótico, William deixava todo o seu instinto ladino aflorar, roubando, se informando, se escondendo, observando.
Em uma destas empreitadas, William ouviu uma suave referência àqueles que haviam destruído a Guilda de Teziir: K’yorl e Tibert. Era uma pista fraca, porém, haviam indícios que os mesmos pretendiam começar a operar nos Vales. O ladino guardou essa informação com carinho, reforçando mentalmente as pessoas que tratavam daquele assunto: eram sembianos, conterrâneos de William.
Além das empreitadas à Cidade do Vale, William contribuiu para prender alguns criminosos perigosos da Encruzilhada dos Candeeiros. Poucos deles foram enviados para um lugar do qual o ladino ouvira falar apenas em histórias: a Abadia do Martelo Justo.
E era esta Abadia o destino da próxima missão que William deveria empreender, sozinho: um antigo aliado do próprio Khelvos passava por apuros em Esembra: Ilmeth, um campeão de Helm. Khelvos havia comprado algumas espadas da Abadia, que eram reconhecidas por sua grande qualidade. Estas espadas deveriam ser contrabandeadas para Esembra, com a ajuda de um halfling outrora condenado: Blazanar Pata Grama. A recompensa deste halfling seria sua liberdade, caso a missão fosse bem-sucedida. William se opôs a isso, porém Khelvos estava irredutível.
E desta forma, William deixou a Encruzilhada…