Dentro de um compartimento oculto no piso do quarto existe um maço de pergaminhos amassados organizados dentro de uma pasta de couro bastante gasta. A caligrafia de quem os escreveu é firme e até bonita nos primeiros registros, mas vai ficando borrada e tremida conforme o leitor se aproxima do final.
Festival da Colheita de 1369 CV
Maldição! Terei de deixar Praka antes mesmo de o sol nascer… Já está tudo acertado. Nem mesmo a influência de Lorde Henry poderá me salvar se os homens da baronesa me encontrarem. É realmente uma pena… Nós tivemos momentos deliciosos juntos. Quantas noites de pecados paradisíacos passamos nos porões de sua mansão nos últimos meses. Quantas coisas experimentamos juntos… No entanto, não partirei de mãos vazias. Como lembrança de minha estadia no Solar Wilfred levarei “A Apoteose de Ythil” para Hallisfrane. Henry considera o texto apenas um devaneio alucinado de uma mente delirante, portanto não dará falta dele. Todavia, existe uma promessa implícita nas palavras do Serafim Amarelo que absolutamente capturou minha atenção. Preciso saber mais sobre a Configuração de Hali e seus prazeres transcendentes… Há pouca coisa agora que posso fazer para despertar meus nervos saturados. Talvez uma nova existência me aguarde após o Beijo do Anjo… Se a história narrada na obra for verdadeira, Ythil experimentou sensações que eu sequer consigo imaginar!
06 de Uktar de 1369 CV
Já estou há algum tempo nesse chiqueiro chamado Hallisfrane. Devo começar as aulas na universidade ano que vem. Me matriculei em um curso qualquer, apenas para cumprir a promessa feita ao meu dileto pai. Espero que meus colegas de classe não sejam tão enfadonhos e ignorantes quanto o resto da cidade. Fria, suja e desinteressante, Hallisfrane é frequentada pela escória dos trabalhadores braçais. Todos os dias tenho de tolerar a presença asquerosa de bárbaros, mineiros e caçadores. Contudo, talvez isso não seja de todo ruim… A Feira da Calcedônia me pareceu repleta de boas oportunidades… Hoje passei por uma garota melancólica vendendo cestos em uma barraca juntamente com sua irmã mais velha e uma idosa de aparência desagradável. Ela se esforçava para sorrir, mas a raiva e a fome faiscavam em seus olhos castanhos. Imediatamente me lembrei de uma das receitas sugeridas por meu misterioso amigo… Uma dieta de ervas finas e alguns frutos do mar tornariam sua carne mais macia e adocicada. Poderia cear uma de suas coxas na Noite de Auril depois que ela ganhasse peso… Certamente a serviria ao molho de limão e maçã, acompanhada por um bom vinho negro gelado oriundo de Inverno Remoto. Vi uma safra aceitável na Tenda das Maravilhas.
09 de Nightal de 1369 CV
Não imaginei que o meio-elfo fosse mesmo responder minha carta. Era mais provável que o Zhentarim ficasse com meu ouro e simplesmente a destruísse, alegando depois que não recebeu nenhuma resposta. A quem eu iria reclamar? Todavia, não foi o que aconteceu… A chance de existir algum tipo de relação entre esses mendigos esfarrapados que vagam a esmo pelo reino e a Irmandade Amarela era mínima, mas eu estava certo ao escutar as palavras do Serafim ressoando por detrás do moralismo hipócrita desses ditos “Flagelados”… Eles conhecem bem a tênue fronteira existente entre o prazer e a dor. Certamente experimentaram muito do que o Anjo tem a oferecer. Mas Norgren não deseja dinheiro… Em troca da Configuração de Hali, me enviou um estranho poema e pediu que o lesse para uma garota chamada Petra Van Baum. O que me impede de retornar sua missiva dizendo que já cumpri a tarefa? Talvez eu faça isso…
11 de Ches de 1370 CV
As aulas da universidade estavam atrapalhando meus planos, em especial pelo fato de eu ter de dividir o alojamento com um idiota… Acredito que Thomas andou lendo as cartas de Norgren, mas isso não importa… Aluguei um quarto discreto em uma parte distante da cidade e pretendo continuar minha busca a partir de lá, onde terei alguma privacidade. Pelo que descobri, Petra é a filha retardada da Marquesa Van Baum. Para minha sorte, ela quase morreu no acidente ocorrido no lago durante o Festival de Inverno e está passando alguns dias na Torre Lancastenell com a filha do Barão Maximillian. Já a vi algumas vezes na Feira da Calcedônia. Aguardo apenas o momento ideal para me aproximar e ler o maldito poema para ela, conforme o meio-elfo pediu. Algo me impede de simplesmente enganá-lo, uma espécie de intuição, talvez… A julgar pela descrição do Anjo feita pelo Serafim Amarelo, acredito que estou lidando com forças além da minha imaginação. Há mágica poderosa envolvida. Uma mentira tão singela provavelmente será percebida e eu perderei a oportunidade de me apossar da Configuração de Hali. Quanto mais rápido ela me for enviada, mais rápido voltarei a viver… Minhas noites no Suspiro de Beshaba mal conseguem estimular meus nervos… É tudo tão prosaico, tão banal… Se ao menos eu pudesse experimentar uma das receitas de meu amigo misterioso… Mas isso seria arriscado demais. Talvez eu convide Giullianna para jantar quando o artefato estiver em minhas mãos. Eu posso ver em seus olhos um espírito pronto para ser libertado dos limites estúpidos impostos pela moral, pela lei e pela fé. Acredito que ela será uma excelente aluna. Quem sabe eu não consiga reviver os bons momentos passados no Solar Wilfred.
03 de Targakh de 1370 CV
Finalmente consegui me aproximar de Petra e ler o poema, mas desde então tenho dificuldade em conciliar o sono… Às vezes acordo na escuridão do quarto com a nítida sensação de estar sendo observado… Além disso, também escuto o badalar de sinos distantes e uma espécie de cântico quando estou sozinho, mesmo durante o dia. Não sei o que está acontecendo… Talvez eu esteja impressionado pelo sorriso que a garota me dirigiu… Havia algo de perigoso, de selvagem, na expressão que se formou em seu rosto disforme quando conclui a leitura… Seus olhos se apagaram de repente, como uma vela soprada pelo vento… Mas não importa. Já avisei a Norgren que a tarefa foi concluída. Resta aguardar que ele cumpra a sua parte do acordo.
02 de Eleint de 1371 CV
Já havia desistido do artefato. O Zhentarim continuava aceitando meu ouro para enviar cartas ao meio-elfo, mas nenhuma delas era respondida. Nesse meio tempo, o tédio e a insônia quase me enlouqueceram. Tenho pesadelos constantes, mas ao tentar me lembrar deles, sinto uma dor excruciante em minha cabeça, como se ela estivesse sendo perfurada por uma agulha incandescente. Às vezes meu nariz sangra também. Olga me distraiu por algum tempo, mas me cansei de suas estúpidas ideias românticas… Era delicioso ver a confusão em seu olhar quando eu cortava sua pele alva com uma navalha afiada… Pobre passarinho… Tão desesperada por atenção… Aceitou tudo por amor até aquela meretriz de Telflamm se intrometer em nossas vidas… Mas isso não importa! O fato é que uma velha de aparência desagradável me abordou hoje no caminho para a universidade… Tenho certeza de que ela é cega, mas parecia perfeitamente orientada quando caminhou em minha direção e me entregou um mapa, dizendo que a Configuração de Hali me aguardava na “Caverna Obscura”. Seu sorriso era perturbador, como o de Petra…
09 de Eleasis de 1372 CV
Ontem Olga me contou que estava grávida e pôs fim ao nosso breve relacionamento. Francamente, foi um verdadeiro alívio saber que não precisarei mais tolerar suas lamúrias constantes. No entanto, devo confessar que as lágrimas dela me pareceram bastante apetitosas. Em tempos idos, possivelmente provocariam alguma reação em meus nervos silenciosos… Talvez eu reclame a criança após ela nascer. Consigo até imaginar o horror completo da expressão de Olga no momento em que eu aparecer para buscá-la, acompanhado das autoridades. Certamente seria mais do que o meu pobre passarinho poderia suportar. Quem sabe Olga até tirasse a própria vida… E ainda existem outros “benefícios” a considerar, por assim dizer. Em sua última missiva, meu amigo misterioso sugeriu toda sorte de prazeres a serem extraídos das relações familiares, seja na mesa ou na alcova. Só de pensar nisso, sinto uma pulsão familiar percorrendo meu corpo, despertando sensações que me são tão caras e tão raras atualmente…
Festival da Colheita de 1372 CV
Depois de um ano de preparação, finalmente estou pronto para empreender a jornada. Descobrir algo útil sobre a Caverna Obscura custou-me muito mais do que eu esperava, pois tive de recorrer a uma maldita bruxa chamada Mormo. Encontrá-la não foi fácil… Precisei imolar um jovem e tenro rapazote no Bosque dos Suicidas para chamar sua atenção. Sequer pude brincar com ele antes de matá-lo. Que desperdício… Mormo me disse que a Caverna Obscura é protegida por uma entidade conhecida apenas como “O Rei de Uruath” e que eu só chegaria ao meu destino se ela permitisse, pois sua simples presença no Plano Material é capaz de subverter as leis naturais. Talvez isso explique o estranho aspecto do mapa que a velha me entregou… Ele parece mudar de configuração toda vez que o consulto. No entanto, nem tudo na viagem foi desagradável… O mero vislumbre da Árvore dos Enforcados me encheu de desejo outra vez, reascendendo o furor de meus nervos embotados. A imagem de Olga balançando lentamente em um de seus galhos negros me veio à mente quase de imediato… Seria delicioso satisfazer essa fantasia, em especial ao lado de Lorde Henry, degustando um bom berduskan escuro. Depois poderíamos experimentar a carne de Olga, servidos por Giulliana… Que belo quadro selvagem seríamos para o pincel de Klaire Gatewood, cobertos de sangue e explorando livremente os corpos uns dos outros…
10 de Marpenoth de 1372 CV
Não pensei que fosse retornar com vida… A jornada até a Caverna Obscura não pode ser descrita como uma simples viagem do ponto A até o ponto B. A geografia da região mudava sem aviso. Montanhas, bosques, rios e lagos se afastavam ou se aproximavam de repente, provocando uma vertigem enlouquecedora. Às vezes tinha a sensação de ter caminhando por meses sem chegar a lugar algum, para logo em seguida me deparar com o sopé de uma colina que parecia perdida no horizonte. Somente agora compreendi porque o mapa que a velha me entregou se alterava a todo o momento. Ele reflete a mágica bizarra que subverteu as leis naturais nos arredores da caverna, servindo como um guia relativamente confiável, embora esteja bastante claro que eu só cheguei ao meu destino porque o Rei de Uruath assim desejou… Realmente, a sensação de estar sendo observado tornou-se onipresente, bem como o badalar dos sinos, que começaram a ressoar cada vez mais alto dentro da minha cabeça. E havia também uma espécie de música… Uma cacofonia mórbida que me impedia de pensar direito. Eventualmente eu avistava sombras disformes na orla dos bosques, a me vigiar com seus olhos amarelos doentios… Se não fosse o cansaço extremo provocado pela marcha forçada diária, acredito que não teria conseguido dormir sequer uma noite, até porque meus pesadelos pioraram muito… Lembro-me apenas de ter sonhado com um céu repleto de constelações estranhas, iluminado por relâmpagos violentos… Um olho escarlate brilhava no firmamento, cobrindo a terra com sua luz soturna. Mas nada disso foi tão terrível quando o horror que me aguardava na Caverna Obscura… O local estava envolto em uma névoa tenebrosa, através da qual deslizava um espectro coberto por uma mortalha amarela. Ele estava em toda parte e em parte alguma, sussurrando blasfêmias horripilantes em minha mente. Vaguei às cegas por um bom tempo, sem saber o que iria acontecer. Imaginei que enlouqueceria muito antes de morrer, pois o badalar dos malditos sinos se tornou insuportável. Contudo, em dado momento comecei a escutar gritos, gemidos e súplicas abafados vindos de determinada direção. Seguindo-os, encontrei um suntuoso banquete servido em uma mesa decorada com entalhes macabros. No centro dela estava a Configuração de Hali… Naquele momento, me atirei como um lobo sobre a comida… Somente depois de saciada a fome que me consumia há dias, ousei tocar o artefato. E quantos prazeres aquele simples toque me prometeu… Meus nervos foram imediatamente estimulados… Adormeci ali mesmo e nessa noite não tive pesadelos. No dia seguinte havia um caminho em meio à névoa, que me conduziu à saída da caverna. A jornada de volta pareceu muito mais rápida do que a de ida. Em pouco tempo já havia alcançado a estrada que atravessa o Estreito de Lordo. Amanhã começarei a estudar o enigma da Configuração de Hali. Estou ansioso para desvendar seus segredos.
20 de Uktar de 1372 CV
Faz muitas semanas que não saio do quarto. A fome, a sede e a falta de sono quase me consumiram por completo. Às vezes sinto como se estivesse volitando em um sonho estranho. Minha consciência se desprende do corpo, pairando acima dele em um estado de contemplação quase irônica, como se eu fosse obrigado a assistir minha própria morte, o que acontecerá em breve… No entanto, também sinto que estou prestes a desvendar o enigma da Configuração de Hali, ou talvez ela esteja prestes a devassar completamente meu espírito. É evidente que o artefato está no controle da situação. Sou apenas um reles instrumento de sua vontade. Posso passar horas vasculhando as faces prateadas da maldita caixa sem obter nenhum avanço significativo até que de repente pressiono o local correto e ela adquire uma nova forma. Isso já aconteceu cinco vezes e a cada novo movimento tenho a nítida sensação de que alguma coisa está se aproximando de mim. Junto com ela vem o badalar dos malditos sinos e uma cacofonia mórbida, cujo principal efeito é provocar uma vertigem tão poderosa que muitas vezes desmaio de agonia, vomitando bile quente por sobre os excrementos que cobrem o chão. Trata-se de um teste, estou certo disso… O Anjo somente revelará suas delícias proibidas para as almas dignas de se deleitar em seu esplendor sangrento. Mais um movimento… Preciso viver o suficiente para apenas mais um movimento…